Projecto âncora
âncora
Cartas à minha avó: setembro 2006

21 setembro, 2006

O que me move

O que me move não é ser reconhecida, não é ser importante, não é dizer «Eu percebo» quando não percebo nada. O que me move não é ser boa, nem melhor do que os outros. O que me move está dentro do meu peito e chama-se coração. Está dentro do meu corpo e chama-se alma. Está dentro da minha cabeça e chama-se solidariedade.
Quantas vezes "exigimos" à sociedade um tratamento VIP que não existe (a menos que seja bem pago), atenções que não têm connosco, delicadezas cada vez mais raras nos dias que correm? Quantas vezes não enchemos a boca para dizer «Eu pago os meus impostos, tenho direito a...»? É bem verdade, devíamos ter direito a tantas coisas que não temos... Direito a ser bem atendidos num hospital, direito a colégios públicos de qualidade para os nossos filhos, direito a garantias de reforma, direito a subsídios de desemprego e licenças de maternidade pagos a tempo e horas. Tanta coisa que realmente necessitamos e não nos é facultada. Mesmo assim, a mentalidade portuguesa baseia-se tantas vezes no «Tenho o direito de ... » e tão poucas no «Tenho o dever de ...».
Não venho falar da dor de perder um filho. Essa, felizmente, não conheço. Venho falar de uma iniciativa que visa dar algum apoio a quem passou por isso. Porque é preciso dar para receber, porque, diz-se, a solidariedade começa em casa. Vamos olhar para este projecto com olhos de ver, vamos apoiar da maneira possível (e há tantas formas de ajudar!), vamos unir mãos e esforços para que esta associação possa dar algum conforto a pais que estão a passar por períodos de luto. Porque não basta dizer «Coitados, tenho tanta pena...». É preciso mais do que isso, é preciso agir!
http://projectoancora.blogs.sapo.pt

14 setembro, 2006

Como é que se explica?

Como é que se explica a uma mãe e a um pai que o seu filho único de 23 anos teve um acidente de automóvel? Que sai quase ileso? Que sai do carro pelo seu próprio pé? Que foge de quem o persegue? Que é capturado? Que está agora na morgue porque foi enforcado por um dos passageiros do outro carro?
Em que país estamos? Que tipo de animais somos? Em que Terra vivemos?
Pensei nunca viver o suficiente para assistir a isto, mas já vi que quanto mais vivo mais me surpreendo. Estou consternada. Existir neste mundo dá-me vómitos.
Se existe justiça para além da terrena espero bem que se cumpra.

11 setembro, 2006

Irmã da minha alma

Irmã da minha alma, que me soube tão bem a semana que passei contigo. Os jogos de ping-pong, as conversas durante as sestas do piolho, o ver-te e sentir-te tão bem.
É com lágrimas e comoção que te escrevo, e com alegria também.
Quando dizes que não percebes o significado de "tão longe", que estás quase à mesma distância do que se vivesses no norte do país, sou obrigada a dar-te razão, mas porque raio é que as fronteiras geográficas hão-de ser barreiras entre as pessoas? Vou tentar encaixar isto na minha cabeça e, sobretudo, no meu coração. «Não há longe nem distância», como dizia o Richard Bach. O longe somos nós que o fazemos e estou empenhada em encurtar as distâncias entre nós.
Não sei se notaste grande diferença em mim. Eu noto. Sei que ser mãe não muda a personalidade de uma mulher, mas maneira como se vê a vida mudou muito, pelo menos para mim. No sentido de não perder tempo com coisas fúteis, de não deixar de dizer o que tem de se dizer na devida altura, no sentido de temer que uma despedida nem sempre dê lugar a um reencontro. Mais lamechas, talvez. Com mais medo, certamente. Com menos pudor.
Apesar de distantes tenho a certeza de que cada vez te sinto mais minha irmã. Cada vez que te vejo encontro mil coisas minhas em ti. Estranhamente quando olho para o meu filho reconheço também nele traços teus. Para a próxima vou-me lançar nos teus braços e dormir uma sesta enroscada a ti. E nesse momento a vida vai dar um salto para trás e estaremos as duas novamente a dormir abraçadas na nossa cama. Certas de que apenas poderíamos ser irmãs uma da outra.
Cada vez me custa mais deixar-te ir. Cada vez gosto mais de te rever.

Regressei

Regressei à casa que me preenche a maioria das lembranças da minha infância. Cada pedra, cada telha esconde um pedaço de mim. Em cada parede me reconheço, em cada objecto me encontro. Em cada espaço lembro as brincadeiras de criança com a minha irmã, com as primas, os risos, as sestas feitas a contra gosto nas tardes tórridas de Verão, à espera que fossem horas de darmos uns mergulhos e umas braçadas na água fresca do tanque.
A casa vive, fala-me de ti. Ajuda-me a lembrar pormenores que às vezes se me turvam, ajuda-me a ficar pequena de novo, sentir-me no teu colo, aninhada, ouvir os silêncios da natureza e pensar que sempre seria assim. Não foi sempre assim, avó. Infelizmente não foi. Mas os nossos brinquedos resistiram ao tempo, permanecem no móvel alto e envidraçado, olham para mim lá de cima como que a dizer «Lembras-te?». Claro que me lembro. Da boneca de porcelana a quem tricotei vestidos de malha, do gato amarelo de borracha a quem fiz uma coleira em crochet, do pião, dos barriguitas, da pandeireta vermelha com um sapo no meio que me compraram numa qualquer festa da aleia. E o arrepio que sinto ao ver o meu filho com ela na mão a agitá-la... E lembro-me de ser assim, minúscula como ele, e acreditar que a vida era simples e bonita, apenas. Nunca acreditei quando dizias «Aprende que eu não duro sempre». Será que aprendi o suficiente? Não creio.
Regressei à casa onde cresceu uma parte significativa do que sou agora. Precisa de cuidados, precisa de atenção, precisa de dedicação, sobretudo. Deitada na cama de criança a olhar para o tecto planeio mudar o chão, pintar os quartos, mudar alguns quadros. Apercebo-me de que me sinto muito bem nesta casa, apesar de precisar de pequenas obras de manutenção. Apercebo-me de que este será, talvez, um processo de renascimento, um reencontro, uma reestruturação interna e externa. As coisas quando não são cuidadas perdem-se, e não é essa a minha intenção. Pergunto-me insistentemente porque não volto mais vezes. Não sei. Mas vou voltar com mais frequência, prometi a mim mesma.
Regressei. E senti que estavas lá à minha espera. Que andaste comigo pelos campos, que ouvimos juntas o sino da igreja de quarto em quarto de hora, que sentimos as duas o vento nas velhas árvores que ainda povoam a quinta. Foi tão bom que nem me lembrava como era bom o gosto das coisas simples.