Projecto âncora
âncora
Cartas à minha avó: novembro 2006

10 novembro, 2006

Desprendimento

Quando penso a sério no assunto, acho que o objectivo primordial de estarmos aqui é conseguirmos praticar sem esforço o desprendimento. Pensarmos nas coisas materiais como acessórias, passageiras, breves com um sopro de vento.

Uma criança nasce selvagem, sem condicionalismos, sem regras impostas, sem restrições de quaquer ordem. À medida que vai crescendo vai sendo ensinada a ser gente, a portar-se como gente, a falar, a saber estar, a relacionar-se com os outros. Tem de andar vestida, calçada, tem de aprender a adaptar-se às regras duras da vida, tornear obstáculos, camuflar sentimentos, ser inteligente e educada, como se deseja. À sinceridade de uma criança respondemos muitas vezes com um redondo «Isso não se faz», ainda que ladeado de um sorriso de soslaio quando ela não nos está a ver. Ensinamos a dissimulação, o medo da sinceridade com receio de caír no ridículo.

O meu caminho interior leva-me a crer que estamos cá para praticar o desprendimento, a não nos deixarmos condicionar pelo que os outros pensam de nós, a não deixarmos de dizer o que pensamos, a não entrarmos no sistema de dar e querer sempre algo em troca. Não dar para receber, não plantar para colher. Ainda que o universo nos dê sempre algo em troca, devemos dar pelo acto em si e não esperar retorno.

Haverá um dia em que já não nos interessa a marca da roupa que vestimos, o carro que nos transporta para o emprego, o que mostramos aos outros mas sim o que somos, aquilo em que acreditamos e o que estamos dispostos a fazer por nós e pelos outros. Como se nos tivesse sido arrancada a pele e nos tivesse sido dada a oportunidade de viver de novo, a uma escala bem mais interessante do que a actual. Acho que então estaremos prontos para partir rumo a uma nova aventura, quando formos autênticos, verdadeiros, conscientes da nossa missão.

Temos de aprender a não sermos dominados nem por pessoas, nem por casas, nem por carros ou empregos. Temos de ver isso como acessório, isso não nos diz quem somos. A nossa verdadeira identidade reside na grandeza da nossa alma, na amplitude do nosso pensamento, no calor do nosso coração. Quem somos está dentro de nós, não na imagem que transparece. Quem somos conjuga-se no verbo SER e não no verbo TER, como erradamente a maior parte das pessoas pensam.

09 novembro, 2006

Ponto de embraiagem

O amor é como o ponto de embraiagem: tem de se ter ambos os pés em perfeita sintonia, no ponto certo, não mais abaixo, não mais acima, mas no ângulo correcto que permita seguir em frente.

Às vezes somos dois pés descordenados, desconexos, e deixamos o amor ir abaixo. Metemos a chave na ignição uma vez mais, rodamos uma, duas, três vezes e parece que não funciona. Não conseguimos sair do lugar. Avariámos o amor ou esquecemo-nos de meter combustível?

E começamos a andar a pé, tu com o esquerdo e eu com o direito. Ao pé-coxinho, cada um para seu lado, apercebemos-nos de que há certas coisas propositadamente feitas para andarem aos pares. É o nosso caso - o esquerdo sem o direito não vai a lado nenhum. O direito sem o esquerdo perde o sentido. E então damos novamente à chave e seguimos em frente, às curvas, aos solavancos, mas seguimos.

Acreditar de olhos fechados

Quantas vezes sou invadida por uma certeza premente de que já estive aqui mais vezes, de que já vim à terra antes, de que a minha vida é a continuação de outras e que tenho uma missão por cumprir. Sinto-o. Como uma semente lançada ao vento a planta nasce, floresce, seca e é absorvida pela terra, decompõe-se em húmus e volta de novo ao ciclo interminável da vida.
Por que razão voltamos tantas vezes? Creio que em busca da perfeição, creio que para limar arestas e superar as mais difíceis provas. A minha atitude de há uns tempos para cá mudou: em vez de contornar os obstáculos enfrento-os, transponho-os, por muito que isso me custe. Penso sempre que é mais uma coisa resolvida que não vou arrastar para a próxima vida.

Custa-me a aceitar o facto de haver pessoas que vêm a este mundo por um espaço de tempo muito curto, mas o coração leva-me a acreditar que esses seres são seres de luz, quase anjos, que vieram cá abaixo para finalizar a missão que lhes tinha sido destinada. Por muito que esse propósito permaneça velado, alheio ao nosso conhecimento, toldado pela dor dos que acolheram um ser tão especial por tão pouco tempo. Seria esse um último passo para se tornarem anjos? Gosto de acreditar que sim.

Os anjos para mim são seres de uma pureza extrema, que nasceram com o propósito de nos guiarem pela vida, de nos iluminarem nos momentos mais obscuros, de não nos deixarem desistir por muito que nos sintamos tentados a fazê-lo. As crianças que morrem ascenderão a anjos da guarda? Será esse o propósito da morte de uma criança?

Acredito plenamente num universo paralelo ao nosso, numa vida num plano mais elevado, em que as pessoas se dediquem a ajudar os comuns mortais a evoluir, a caminhar por entre a vida com a consciência de que só o bem nos pode levar a algum lado, de que os seus actos terão reflexos numa vida futura, de que há que praticar o bem agora, antes que seja tarde demais.

É difícil aceitar a morte de um filho, de um irmão, de um neto pequeno. Não se aceita, aprende-se a lidar com isso, mas nunca se aceita. Porque é quebrada uma corrente, porque é invertida a ordem natural das coisas, porque se fica de braços vazios e tudo o que vier depois nunca será igual. Há quem queira voltar as costas à vida, há quem viva com os sentidos adormecidos o resto da vida e, por outro lado, há quem comece de novo apesar de tudo, apesar da devastação, do desespero, das saudades, da dor que não passa. Para conseguir isso é preciso ter muita fé, ainda que se pense que não, é preciso dar o benefício da dúvida e acreditar um pouco que sim, que esta vida continua noutro plano, porque a vida não pode ser só isto.

«Nada se perde, tudo se transforma», como afirmava o Lavoisier. Se existem anjos são crianças de rostos iluminados, seres superiores, pequenos sábios que foram chamados ao céu e que não mais precisarão de regressar a este mundo tão imperfeito que temos na esfera terrestre. Se existem anjos, a tua filha estará entre eles, com aqueles olhos profundos de um azul celeste que tudo tocam, com aquela expressão serena e paciente que ela tinha. Se existem anjos tenho a certeza que ela está na linha da frente - não o sei racionalizar, mas sinto-o.

Os anjos existem, mas acredito que apenas algumas pessoas estão preparadas para sentir a sua presença - aqueles que tenham humildade suficiente para acreditar de olhos fechados e para se lançar no abismo de braços abertos.