Projecto âncora
âncora
Cartas à minha avó: dezembro 2006

27 dezembro, 2006

Para além das palavras

Para além das palavras que andam sempre comigo, tenho outro vício que me acompanha sempre para onde quer que vá. São as duas coisas que me servem de terapia, são as duas coisas que as minhas mãos melhor sabem fazer, melhor conhecem. Quem quizer saber um pouco mais de mim e do que faço, seja benvindo a http://dasminhasmaossaemsonhos.blogspot.com e sinta-se à vontade. É melhor do que tomar Xanax e alivia mais o stress!
Este meu vício foi-me passado também pela minha avó, mestra nestas e noutras artes.

22 dezembro, 2006

Natal é


Natal é ver o sorriso de uma criança ao acordar. Natal é pegar numa mão dispersa e apertá-la contra a nossa. É lembrarmo-nos que, na vida comezinha de todos os dias, até somos felizes. É sabermos que, para além das lutas de todos os dias, das raivas e dos cansaços, temos alguém do nosso lado. É rir com os que estão perto, pensar nos que estão longe e lembrar os que já não estão connosco.
As melhores recordações que tenho dos Natais da minha infância não têm que ver com prendas nem com o Pai Natal. Têm a ver com o conforto que dá estarmos em família, recolhidos no nosso ninho, a lareira acesa, a demanda por musgo para fazer o presépio, as férias escolares de que tanto tenho saudades...
Não acredito neste Natal que se vende por aí. Esse Natal não é meu. O meu Natal veste-se de brilhos dentro de mim, de cânticos, do cheiro das filhoses e dos grãos de açúcar das rabanadas. Do travo exótico da canela no arroz doce, do bolo rei, das couves fumegantes e do bacalhau cozido no prato, do cabrito, do borrego, do polvo frito e das batatas regadas com azeite. O meu Natal é tão simples quanto isto. Detesto o frenesim das prendas compradas à pressa, das montras que nos agridem todos os dias e quase nos obrigam a gastar dinheiro, da alegria forjada e da simpatia arrogante só porque é Natal. Eu isso não faço.
O meu Natal é muito vivido à minha maneira. É uma mistura agri-doce de gastronomia e emoção, embargada num quê de alegria e saudade.
Feliz Natal aos poucos que, insistentemente, me leem e que o ano que se avizinha seja seguramente melhor do que este que agora acaba. Que o Natal seja festejado por dentro, e não apenas à superfície.

05 dezembro, 2006

Não me lembro

Não me lembro desde quando é que me habitam. Não sei sequer se existia antes delas ou se, pelo contrário, a sua presença precedia os meus passos. Desde que me lembro de mim que as tenho coladas aos lábios, às mãos, na ponta da caneta que as cospe e empurra contra a aspereza do papel, ressoam nos meus ouvidos, matutam na minha cabeça até que as deixe saír. Contorço-me, por vezes. Praguejo, outras tantas. Mas elas tomam-me de assalto e invadem, ocupam, conquistam todo o meu espaço sem que tenha tempo para lançar um suspiro. Rendo-me.

Por vezes orquestramos palavras, camuflamos o que nos vai dentro, fingimos o que não somos. Por vezes levam-nos ao horizonte da fantasia, esculpimos a forma e esquecemos o conteúdo, atentamos na superfície e descuramos a profundidade. E cremos ser maestros, donos e senhores de todas as vontades, domadores de palavras. Vamos ao engano. Isso acontece quando não existe nenhuma história para contar. Andamos como borboletas ao redor da luz, em círculos permanentes, até que caímos, exaustos, e não mais nos levantamos. E tudo o que dissemos, e tudo o que escrevemos, e todas as palavras que alinhámos umas atrás das outras se perdem e se esgaçam.

As palavras trespassam-me quais lanças afiadas, servem-se de mim para atalhar caminho, vergam-me, dominam-me, não pedem licença. Chegam. Dou por mim com as mãos trémulas, a caneta em riste, as pestanas gastas de tanto escrever. Neste prazer-cansaço que tantas vezes me consome, nesta dor morna que tantas vezes me atinge. E deixo-me estar. Deixo-as passar, não levanto obstáculos, estou aqui para isso. Sei. Muitas vezes não me fazem sentido. Terá a verdade que fazer sempre sentido? Muitas vezes são palavras duras, azedas, da cor da noite mas não as calo, não as abafo, não as renego. As palavras doces custam mais a chegar às minhas mãos, muitas vezes permanecem presas na garganta.

As palavras nascem no meu coração, passam pelo braço, tomam forma nos meus dedos. Quando ficam presas na garganta ou no estômago é porque ainda não estão prontas para ver a luz e fermentam dias, semanas, por vezes meses. E eu ando num estado quase febril, convulsivo, até que saiam de mim e tomem os seus lugares, tenham a sua voz. Então descanso. Até que me assaltem de novo.