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Cartas à minha avó: Todos os dias

22 junho, 2006

Todos os dias

Todos os dias dou por mim a falar contigo. Para mim é normal, é o meu dia-a-dia. Esquizofrenia? Quem sabe? Prefiro assim.
Falo para dentro, falo como se pensasse, não com a boca mas o pensamento, com o coração. E esse gesto para mim é tão trivial que me envergonho de não o partilhar com ninguém, nem com a pessoa que dorme comigo todas as noites. Iria compreender, achar-me-ia tonta, demente? Pouco interessa. Este é um assunto só nosso.
Um dos meus livros preferidos é o «Cândide», do Voltaire. A ideia que fica é que uma pessoa, por mais solavancos que leve da vida «deve sempre continuar a cultivar o seu jardim», porque as flores florescem da terra mais agreste. E eu acredito que a vida é exactamente isso, é o mandar-nos para o chão todos os dias para que aprendamos a erguer-nos e caminhar direitos.
Muita coisa acontece na vida sem uma razão, também acredito nisso. A Laurinha, por exemplo. Foi um azar que não devia ter acontecido. Nunca deveria ser permitido morrer uma criança. Mas morrem tantas, avó, todos os dias! Acredito, contudo, que a sua mãe vai um dia continuar a cultivar o seu jardim. E que os olhos imensos da Laura estão postos nela, no pai e no irmão. E que um dia todos se vão reunir em abraços, beijos e carinhos. Este é um assunto que também não divido com ninguém sob pena de ser cotada de "maluca", por sofrer tanto por alguém que não conheço. Divido contigo, porque sei que me percebes.
Todos os dias te encontro em mim, todos os dias, para sempre.