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Cartas à minha avó: Acreditar de olhos fechados

09 novembro, 2006

Acreditar de olhos fechados

Quantas vezes sou invadida por uma certeza premente de que já estive aqui mais vezes, de que já vim à terra antes, de que a minha vida é a continuação de outras e que tenho uma missão por cumprir. Sinto-o. Como uma semente lançada ao vento a planta nasce, floresce, seca e é absorvida pela terra, decompõe-se em húmus e volta de novo ao ciclo interminável da vida.
Por que razão voltamos tantas vezes? Creio que em busca da perfeição, creio que para limar arestas e superar as mais difíceis provas. A minha atitude de há uns tempos para cá mudou: em vez de contornar os obstáculos enfrento-os, transponho-os, por muito que isso me custe. Penso sempre que é mais uma coisa resolvida que não vou arrastar para a próxima vida.

Custa-me a aceitar o facto de haver pessoas que vêm a este mundo por um espaço de tempo muito curto, mas o coração leva-me a acreditar que esses seres são seres de luz, quase anjos, que vieram cá abaixo para finalizar a missão que lhes tinha sido destinada. Por muito que esse propósito permaneça velado, alheio ao nosso conhecimento, toldado pela dor dos que acolheram um ser tão especial por tão pouco tempo. Seria esse um último passo para se tornarem anjos? Gosto de acreditar que sim.

Os anjos para mim são seres de uma pureza extrema, que nasceram com o propósito de nos guiarem pela vida, de nos iluminarem nos momentos mais obscuros, de não nos deixarem desistir por muito que nos sintamos tentados a fazê-lo. As crianças que morrem ascenderão a anjos da guarda? Será esse o propósito da morte de uma criança?

Acredito plenamente num universo paralelo ao nosso, numa vida num plano mais elevado, em que as pessoas se dediquem a ajudar os comuns mortais a evoluir, a caminhar por entre a vida com a consciência de que só o bem nos pode levar a algum lado, de que os seus actos terão reflexos numa vida futura, de que há que praticar o bem agora, antes que seja tarde demais.

É difícil aceitar a morte de um filho, de um irmão, de um neto pequeno. Não se aceita, aprende-se a lidar com isso, mas nunca se aceita. Porque é quebrada uma corrente, porque é invertida a ordem natural das coisas, porque se fica de braços vazios e tudo o que vier depois nunca será igual. Há quem queira voltar as costas à vida, há quem viva com os sentidos adormecidos o resto da vida e, por outro lado, há quem comece de novo apesar de tudo, apesar da devastação, do desespero, das saudades, da dor que não passa. Para conseguir isso é preciso ter muita fé, ainda que se pense que não, é preciso dar o benefício da dúvida e acreditar um pouco que sim, que esta vida continua noutro plano, porque a vida não pode ser só isto.

«Nada se perde, tudo se transforma», como afirmava o Lavoisier. Se existem anjos são crianças de rostos iluminados, seres superiores, pequenos sábios que foram chamados ao céu e que não mais precisarão de regressar a este mundo tão imperfeito que temos na esfera terrestre. Se existem anjos, a tua filha estará entre eles, com aqueles olhos profundos de um azul celeste que tudo tocam, com aquela expressão serena e paciente que ela tinha. Se existem anjos tenho a certeza que ela está na linha da frente - não o sei racionalizar, mas sinto-o.

Os anjos existem, mas acredito que apenas algumas pessoas estão preparadas para sentir a sua presença - aqueles que tenham humildade suficiente para acreditar de olhos fechados e para se lançar no abismo de braços abertos.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Cat, fizeste-me chorar, malandra...achas que o meu cepticismo é um travão? ainda tenho muito que aprender...um beijinho grande.
Fátima..

10:39 da tarde  

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