Projecto âncora
âncora
Cartas à minha avó: Regressei

11 setembro, 2006

Regressei

Regressei à casa que me preenche a maioria das lembranças da minha infância. Cada pedra, cada telha esconde um pedaço de mim. Em cada parede me reconheço, em cada objecto me encontro. Em cada espaço lembro as brincadeiras de criança com a minha irmã, com as primas, os risos, as sestas feitas a contra gosto nas tardes tórridas de Verão, à espera que fossem horas de darmos uns mergulhos e umas braçadas na água fresca do tanque.
A casa vive, fala-me de ti. Ajuda-me a lembrar pormenores que às vezes se me turvam, ajuda-me a ficar pequena de novo, sentir-me no teu colo, aninhada, ouvir os silêncios da natureza e pensar que sempre seria assim. Não foi sempre assim, avó. Infelizmente não foi. Mas os nossos brinquedos resistiram ao tempo, permanecem no móvel alto e envidraçado, olham para mim lá de cima como que a dizer «Lembras-te?». Claro que me lembro. Da boneca de porcelana a quem tricotei vestidos de malha, do gato amarelo de borracha a quem fiz uma coleira em crochet, do pião, dos barriguitas, da pandeireta vermelha com um sapo no meio que me compraram numa qualquer festa da aleia. E o arrepio que sinto ao ver o meu filho com ela na mão a agitá-la... E lembro-me de ser assim, minúscula como ele, e acreditar que a vida era simples e bonita, apenas. Nunca acreditei quando dizias «Aprende que eu não duro sempre». Será que aprendi o suficiente? Não creio.
Regressei à casa onde cresceu uma parte significativa do que sou agora. Precisa de cuidados, precisa de atenção, precisa de dedicação, sobretudo. Deitada na cama de criança a olhar para o tecto planeio mudar o chão, pintar os quartos, mudar alguns quadros. Apercebo-me de que me sinto muito bem nesta casa, apesar de precisar de pequenas obras de manutenção. Apercebo-me de que este será, talvez, um processo de renascimento, um reencontro, uma reestruturação interna e externa. As coisas quando não são cuidadas perdem-se, e não é essa a minha intenção. Pergunto-me insistentemente porque não volto mais vezes. Não sei. Mas vou voltar com mais frequência, prometi a mim mesma.
Regressei. E senti que estavas lá à minha espera. Que andaste comigo pelos campos, que ouvimos juntas o sino da igreja de quarto em quarto de hora, que sentimos as duas o vento nas velhas árvores que ainda povoam a quinta. Foi tão bom que nem me lembrava como era bom o gosto das coisas simples.