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Cartas à minha avó: Não tenho medo

23 junho, 2006

Não tenho medo

Não tenho medo de dizer as coisas, mas no papel saem-me mais claras, mas límpidas, mais verdadeiras. Ao dizê-las por vezes distorço-as, interrompem-me a linha de pensamento e cortam-me o raciocínio e eu baralho-me e digo o que quero, mas de outra maneira. Ao escrevê-las não há margem para erro, são exactamente aquilo que eu quero dizer. Pelo menos para mim, para quem lê terão, talvez, outra interpretação.
Tenho medo de deixar coisas por dizer. Aos meus pais, ao meu filho, ao meu companheiro, mas sobretudo, à minha irmã.
Dizem que a família não se escolhe, mas eu acho que sim. Se eu pudesse escolhia-te outra vez para minha irmã. Temos ano e meio de diferença, mas eu fui a "mais velha" em quase tudo. Quando andávamos na escola primária ela escondia o saco da natação dentro do meu, tal era a fobia da piscina. Quantas vezes não foi a minha mãe dar connosco sentadas na escadaria da entrada, eu sentada e ela deitada, a chorar, no meu colo?... Quantas vezes não levou tareia de mim, pelo simples facto de que eu era a mais forte e ela a mais frágil? Tive mais namorados do que ela, conhecia sempre mais gente no liceu, era mais popular, tive o meu período primeiro, fui trabalhar primeiro, saí de casa dos pais primeiro. Mas numa coisa ela foi a primeira - na atenção que ganhava lá em casa por ser a mais frágil, por ser a deprimida, a incompreendida. Tive muitas vezes ciúmes, agora admito-o, mas nunca lhe quiz mal. Muitas vezes me pareceu estar lá em casa por acidente, que se eu desaparecesse ninguém daria pela falta. A isso tudo eu reagi com uma aparente indiferença, que eu era a filha mais forte, equilibrada, que não precisava de atenção dos outros para sobreviver. Cresci em muita coisa sem contar com a ajuda de ninguém, não porque não ma dessem mas porque era orgulhosa o suficiente para a recusar. Equilibrei-me a mim própria, sobretudo por ter a noção de que os meus pais já passavam por bastante com a minha irmã, que eu não devia maçá-los com as minhas dores de crescimento. Tive sorte, não saí muitas vezes de órbita, passei ao lado de muita coisa que me podia ter feito sinceramente mal. Depois disto tudo, só posso concluir que a vida tem uma ironia do caraças. Há cerca de quatro anos os meus pais construíram a vivenda dos seus sonhos e a família destroçou. Primeiro eu saí de casa, depois foi ela. Eu fui viver para a outra margem do rio. Ela, para França. A frágil, a desprotegida foi para o mundo, sem rede. E o mais fantástico: deu-se bem.
Os meus pais ficaram com o síndroma do ninho mais que vazio, valeu-lhes o facto de terem mudado de casa, de ser esse o seu projecto de sonho na altura. E eu, que nunca estive habituada a ter as atenções centradas na minha pessoa, dou por mim qual filha única, a tentar suprir a carência das filhas que agora existe nos meus pais. Não sei se sou boa nisso, mas tento. E o apoio que tenho no meu dia-a-dia são eles e o deles penso ser eu. Coisa estranha. As voltas que dá o universo.
Há, no entanto, uma sensação que me consome. Às vezes sinto-me um pouco órfã de irmã. Ela vive, graças a Deus, mas está longe e o nosso convívio que antes era diário passou agora a ser esporádico e através da net ou do telefone. É o possível, mas não é igual. Eu sei que ela agora é mais feliz e eu também o sou por isso, mas custa. Antes dormíamos juntas por opção - sempre tivémos dois quartos e duas camas. Há tanta coisa que eu não lhe digo por causa deste defeito estúpido que tenho de gostar de escrever em vez de dizer. Eu sei que a minha família a longo prazo, a minha família de sangue, será a minha irmã. E é mais por isso que me custa tê-la longe. Não me quero tornar uma estranha para a pessoa que, acredito, melhor me conhece.
Vou tentar dizer-lhe tudo. Não sei se consigo, mas vou tentar.

2 Comments:

Blogger ♥ tm said...

Olá Catarina!
Parabéns pela forma como descreves o que sentes. Fizeste-me voltar no tempo e também recordar a minha avó querida... enfim deixaste-me com uma lágrima nos olhos.
um abraço

11:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Também me tocou muito o teu texto. Sobretudo porque tenho uma relação muitissimo semelhante com a minha irmã, só que no meu caso sou eu que vou partir para França!

11:22 da tarde  

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