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Cartas à minha avó: A dor

27 junho, 2006

A dor

A dor é terrível, imensa. Imagino que seja. Não sei, de todo, mas deve ser. Estamos minimamente preparados para irmos perdendo familiares mais idosos. Vão partindo, aos poucos, vamos aprendendo a libertá-los de nós, devagarinho, na maior parte das vezes, por vezes de repente. Custa sempre, mas no fundo entendemos que a lei da vida se cumpre, ainda que mesmo assim nos pareça injusto. Vamos abrindo os braços, vamos abrindo mão até que eles não estão mais connosco mas em todo o lado e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum.
Nunca estaremos preparados para perder um filho. Que estupidez tão grande, que absurdo tão grande, que sentido terá perder um filho? Nenhum, estou certa. Ainda que mais tarde as coisas se arrumem na nossa cabeça, ainda que mais tarde consigamos enfrentar a situação de frente, ainda que mais tarde tudo pareça ocupar o devido lugar. O que permanece será o vazio, os braços cheios de saudade, o peito cheio de silêncios, os olhos cheios de nada. E o mais absurdo, o mais injusto e o mais cruel é que sobrevivemos à morte de um filho. Morremos por dentro, a alma seca, encolhe, enche-se de feridas e envelhece para sempre, mas o corpo permanece, sobrevive, fisiologicamente continua o seu caminho. E isso dói, magoa. Devia parar tudo, o mundo devia deixar de existir, deviamos morrer também. Apodrecemos por dentro, aqui está a tradução fiel. Sem mais palavras, sem mais definições. Apodrecemos. E o mundo continua, impassível, indiferente à tragédia que se abateu sobre as nossas cabeças, e todos os dias o sol amanhece e se põe como se nada fosse.
Falo de cor. Não sei e espero nunca saber o que custa perder um filho. Aproximo-me da dor de outrém, dói-me também só de pensá-la, mas não consigo alcançar a medida da dor que se tem. Nem quero. Quero apenas e só que essa pessoa saiba o quanto mudou a minha vida, o quanto o seu pequeno anjo significa para mim e para tantos que nunca, sequer, o conheceram. Quero apenas que essa pessoa saiba que lhe ofereço aquilo que muito humildemente tenho para lhe dar: palavras. Sei que não chega, sei que não diminui a sua dor, mas se ajudar um pouco já me dou por satisfeita.
Depois de passares por caminhos de trevas e por túneis obscuros vais encontrar a luz. Por mais que tarde, por mais que custe andar por caminhos escuros, por mais cruel que seja andares com os olhos velados, às cabeçadas contra as paredes. Esse é, para já, o teu caminho, a tua dor. Inteira, só tua, à tua espera. Ninguém poderá passar por ela por ti. Só tu poderás enfrentá-la, debater-te com ela, derrotá-la após muita luta. A única coisa que podem fazer por ti é escutar-te e dar-te força, coragem, ânimo.
Por vezes para darmos um passo em frente temos de dar dois passos para trás. Não interessa, para a frente, para trás, o que interessa é caminhar. Acredita que vais ser um pouco mais feliz do que agora, não interessa como, faz apenas o esforço de acreditar. Ainda que não tenhas força para, de momento, pensar como o vais fazer.
Desculpa por falar de uma dor que não conheço, desculpa se as coisas que te digo não fazem sentido, desculpa por querer-te tanto bem mesmo sem te conhecer.