Projecto âncora
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Cartas à minha avó: Não me lembro

05 dezembro, 2006

Não me lembro

Não me lembro desde quando é que me habitam. Não sei sequer se existia antes delas ou se, pelo contrário, a sua presença precedia os meus passos. Desde que me lembro de mim que as tenho coladas aos lábios, às mãos, na ponta da caneta que as cospe e empurra contra a aspereza do papel, ressoam nos meus ouvidos, matutam na minha cabeça até que as deixe saír. Contorço-me, por vezes. Praguejo, outras tantas. Mas elas tomam-me de assalto e invadem, ocupam, conquistam todo o meu espaço sem que tenha tempo para lançar um suspiro. Rendo-me.

Por vezes orquestramos palavras, camuflamos o que nos vai dentro, fingimos o que não somos. Por vezes levam-nos ao horizonte da fantasia, esculpimos a forma e esquecemos o conteúdo, atentamos na superfície e descuramos a profundidade. E cremos ser maestros, donos e senhores de todas as vontades, domadores de palavras. Vamos ao engano. Isso acontece quando não existe nenhuma história para contar. Andamos como borboletas ao redor da luz, em círculos permanentes, até que caímos, exaustos, e não mais nos levantamos. E tudo o que dissemos, e tudo o que escrevemos, e todas as palavras que alinhámos umas atrás das outras se perdem e se esgaçam.

As palavras trespassam-me quais lanças afiadas, servem-se de mim para atalhar caminho, vergam-me, dominam-me, não pedem licença. Chegam. Dou por mim com as mãos trémulas, a caneta em riste, as pestanas gastas de tanto escrever. Neste prazer-cansaço que tantas vezes me consome, nesta dor morna que tantas vezes me atinge. E deixo-me estar. Deixo-as passar, não levanto obstáculos, estou aqui para isso. Sei. Muitas vezes não me fazem sentido. Terá a verdade que fazer sempre sentido? Muitas vezes são palavras duras, azedas, da cor da noite mas não as calo, não as abafo, não as renego. As palavras doces custam mais a chegar às minhas mãos, muitas vezes permanecem presas na garganta.

As palavras nascem no meu coração, passam pelo braço, tomam forma nos meus dedos. Quando ficam presas na garganta ou no estômago é porque ainda não estão prontas para ver a luz e fermentam dias, semanas, por vezes meses. E eu ando num estado quase febril, convulsivo, até que saiam de mim e tomem os seus lugares, tenham a sua voz. Então descanso. Até que me assaltem de novo.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Artista!!!!
Isso é o que tu és!

Facilmente reconheço um, pois o que tu faz das letras eu faço da tinta.

Nem vou ler o resto, quero ficar hoje, com isso na cabeça!

Giovane Silva - Brasil
giovanesilva@hotmail.com

8:04 da tarde  

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