Projecto âncora
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Cartas à minha avó: outubro 2006

10 outubro, 2006

Quer conhecer-me melhor

Quer conhecer-me melhor, diz. Quer compreender-me enquanto pessoa, acrescenta. Eu continuo a dizer que não me conhece, apesar de namorarmos há 8 anos e de estarmos juntos há 4. Somos a água e o vinho, digo eu. Somos o sol e a lua, acrescento. Temos pouquíssimos pontos de intersecção e raros interesses em comum. Mas se estamos juntos, concluo, deve haver uma qualquer razão que a razão desconhece, um qualquer motivo que escapa aos nossos radares. Deve haver, apesar de no momento não conseguir desvendá-lo.
Às vezes apetece-me dar um pontapé em tudo e seguir a minha vida, virar costas, deixar de me chatear. Por que raio de motivo é que tenho de andar a minha vida toda a remar contra a maré, a enfrentar, a debater, a fazer braços de ferro que não levam a lugar nenhum? Eu sou uma pessoa de paz, de calma, ele é uma pessoa combativa, que gosta de um bom despique, que precisa de competição para viver. Mas depois paro, inspiro, penso se seria mais feliz. Acho que não.
Quer conhecer-me melhor, diz. Só me apetece dizer «Esta sou eu, estou aqui, lê aquilo que guardo para mim e que ponho no papel em desabafo. Toma, é pegar ou largar». Só me apetece esfregar-lhe este blog no nariz e dizer-lhe que, apesar do que ele muitas vezes pensa, tenho sentimentos, tenho palavras, tenho projectos para mim enquanto mulher e ser humano. Não sou só esposa, mãe e profissional, sabes? Sou muito mais. Não sou só uma máquina de trabalhos domésticos, sabes? Questiono muitas vezes a minha vida, apesar de, na maior parte das vezes, não o partilhar contigo. Mas depois lembro-me do «sagrado que há em nós», como alguém um dia me disse, e concluo que a minha vida será um livro aberto, mas apenas lerá todas as páginas quem se mostrar disposto a isso. Não tenho de ser eu a dar-me a descobrir apenas. Tiro ainda outra brilhante conclusão: raio dos homens... O trabalho que nos dão e a falta que nos fazem!

Tanto resta por dizer

Tanto resta por dizer, tanto que me fica no canto da memória, no canto da retina, atirado para bem fundo no meu coração. Tanto por dizer...
Sabes, avó, pensamos sempre que quando as pessoas já morreram há algum tempo a dor esmorece e dá lugar a serenidade. É verdade, bem o sei, mas o espaço físico que a perda nos deixa é impreenchível e cresce a cada dia. Ainda que mil e uma outras coisas nos ocupem a cabeça. No coração a ferida permanece aberta, latente e quando menos esperamos volta a rasgar, a sangrar e a doer.
Há dias dei por mim aos prantos quando, na televisão, cantavam uma das músicas que tanto gostavas. «Os meninos à volta da fogueira/Vão aprender coisas de sonho e de verdade/ Vão saber como se faz uma bandeira/Vão saber o que custou a liberdade». Chorei, chorei muito, ouvi-te cantar esta canção ao meu ouvido, recordei plenamente o teu timbre, a tua voz, a alegria que era para ti cantar. E o tanto que te dizia esta letra.
Depois recordei uma outra, do José Cid, e dei por mim a cantá-la com um nó na garganta: «Amar como Jesus amou/ Sonhar como Jesus sonhou/Pensar como Jesus pensou/Viver o que Jesus viveu/Sentir o que Jesus sentia/ Sorrir como Jesus sorria/ E ao chegar ao fim do dia/Eu sei que dormiria muito mais feliz.» Independentemente de acreditar em Jesus ou não esta música em ti faz todo o sentido. E muitas vezes quando me sinto presa por um cordel canto para dentro esta canção e fico de rastos porque me fazes tanta falta, avó, porque apesar de ter aprendido a viver sem ti tudo isto é tão duro e tão absurdo, tudo isto é tão vão sem a tua presença. Depois recomponho-me, tento acreditar que estás bem e que andas sempre comigo no meu peito e acalmo um pouco. Mas deixar de doer não. Nunca deixa de doer. É uma dor mais aguda, mais fina, mas está sempre lá.
Sabendo que não sou nem nunca serei perfeita tento, no entanto, dar um sentido à minha passagem pela vida. Tento ser melhor, tento fazer melhor, tento ajudar quem precisa e ajudar-me a mim ajudando os outros. Porque acredito que temos uma missão a cumprir, uns de uma maneira e outros de outra.
Dou por mim a questionar-me acerca deste querer voltar atrás e avançar ao mesmo tempo, desta nostalgia tão profunda que me invade ao recordar o passado. Quando era pequena perguntavam-me o que queria ser e eu respondia, com muita simplicidade e sinceridade, «Bébé». Parece que já adivinhava que crescer dói. As pessoas achavam que respondia isso por graça, mas não, eu achava que, realmente, ser bébé era do melhor que havia. Credo, como tinha razão! E toda a minha infância desfila qual filme de cinema à minha frente quando ouço o saudoso Carlos Paião a cantar «Então, bate, bate coração/Louco, louco de ilusão/A idade assim não tem valor/Crescer,vai dar tempo p'ra aprender,/Vai dar jeito p'ra viver/O teu primeiro amor». Claro que esta música também dá direito a meia-hora de lágrimas choradas convulsivamente e oo silêncio que depois me invade e fica por preencher.
Não, avó, não me esqueço de ti por mais anos que passem. Já passaram dezasseis e o que eu descobri até agora foi que a saudade é igualmente proporcional à passagem do tempo. Vamos é aprendendo a resistir.