Projecto âncora
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Cartas à minha avó: julho 2006

27 julho, 2006

A vida

De tudo, ficaram três coisas;
A certeza de que estamos sempre recomeçando...
A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...
Portanto fazer da interrupção um caminho novo...
Da queda um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho uma ponte...
Da procura, um encontro...

(Fernando Pessoa)

26 julho, 2006

Esta sou eu

Esta sou eu. Sempre com os óculos postos (com medo de os perder) e um livro a tiracolo. Para quem não me conhece, eis a minha figurinha:



Fui ao teu encontro

Fui ao teu encontro com a alma cheia de luz, com a cabeça cheia de ideias, com as mãos cheias de palavras. Fui ao teu encontro impelida por uma qualquer força estranha, não por pensamentos, não por intenções, por qualquer coisa maior e mais abstracta que não consigo explicar. Nunca me tinha acontecido nada igual. Saír do meu mundinho, galgar passeios, saír do trilho habitual e encontrar alguém que nunca vi. Fui ao teu encontro com ansiedade, com as mãos a tremer, com o espírito embargado numa emoção prestes a transbordar.
Vi-te. Caíram-me as ideias, fiquei sem palavras, mas a luz permaneceu. Porque tudo o que te poderia dizer era tão pouco, porque todas as palavras que tinha pensado pareciam agora tão sem sentido.
Não te queria trazer lágrimas, como te disse. Portei-me à altura (não portei?), engoli a angústia, contive as lágrimas, retive os nervos. Mostrei-me como sou, nem mais nem menos. E percebi a importância de nos darmos aos outros sem reticências, sem hesitações, sem disfarces.
Sei que não anulo a tua dor. Sei que tudo o que possa dizer ou fazer não vai aliviar em nada o caminho triste e espinhoso que agora percorres. Mas se conseguir arrancar-te um sorriso que seja já terá valido a pena. Se conseguir vislumbrar uma ponta de esperança nos teus olhos já ganhei muito mais do que ofereci.
Para mim não és um náufrago. Para mim não és uma fortaleza. És um ser humano com todas as limitações que isso implica. E reconhecer isso é um grande passo em frente. Mulher com letra grande, é isso que tu és.
Não te quero trazer lágrimas, ainda que saibas que para mim não tens de mostrar apenas sorrisos. Não há mais palavras. Como disseste, só há sentimentos.

25 julho, 2006

Aviso à navegação

Aviso à navegação deste blog: muitos dos poemas que escrevo estão publicados, algures. Sou contra o plágio, contra a cópia, contra o falsete. Podem usá-los como meio, (se para isso servirem), de engatar alguém, comover alguém ou para consumo próprio. Não me interessa.
Defendo que as palavras não são de quem as diz mas de quem as ouve, não há palavras que nunca tenham sido ditas, escritas, lidas. Há combinações de palavras originais, palavras não. Apenas peço que não as vandalizem ao ponto de dizerem que foram vocês que as escreveram. Poderiam ter sido, mas não foram. Partilho-as, ofereço-as mas não cedam à fraqueza da cópia barata que se pratica em quase tudo nos dias que correm. Como disse, estão publicadas logo, têm direitos de autor. Tenho dito.

Não tentes

Não tentes,
companheiro,
aprisionar-me
na gaiola dourada
do teu peito.
Ama-me, só.
Sem querer
dominar-me.
Seria
tu perderes-me
e eu, contigo,
pensar
que me encontrava
ao procurar-te.

Catarina Silva.

21 julho, 2006

Acertar agulhas


Acertar agulhas. É como me sinto quando faço malha. Acertar as agulhas da alma, afinar o mecanismo obtuso da cabeça. Sou agulho-dependente. (Mas detesto agulhas daquelas das vacinas. Temo-as, tenho-lhes fobia.).
Estas são agulhas amigas, que firmemente seguro nas mãos, com tanto carinho, que agito em círculos frenéticos, que tecem os fios da minha vida. E o trabalho vai saindo, inteiro, das minhas mãos pequenas e finas e digo «Fui eu que fiz». Mentira, foram elas, eu fui só o maestro que orquestrou a sinfonia.
Faço malha desavergonhadamente no metro, no barco, perante o olhar incrédulo dos outros passageiros. Apetece-me dizer «O que foi, nunca viram?». Retenho-me. Percebo perfeitamente a estranheza que provoco nos outros. Hoje em dia tudo o que fuja ao convencional é, no mínimo, estranho, senão grotesco.
Concentro-me. Meia, liga, troca de cor, mais uma laçada. Inspiro, expiro. Mais uma volta. Aos que se cruzam digo, mentalmente «No meu tempo mando eu, metam-se na vossa vida». Continuo, agarrada a elas qual vício que não se consegue largar.

Quantas vezes

Quantas vezes, na lufa-lufa dos dias, passamos apressados uns pelos outros, ignoramo-nos, tocamo-nos, entrecruzamo-nos, empurrados pela pressa de chegar, a pressa de partir, a pressa de ter pressa para tudo. Quantas vezes um ombro se encosta ao nosso, uma mão nos toca, timidamente, no turbilhão dos transportes públicos, a respiração de alguém sussurra aos nossos ouvidos...
Andamos, mecanicamente, encadeadamente, qual linha de montagem da vida em que agora esquerda, agora direita, em frente. Olhamos-nos nos olhos e não nos vemos, tocamo-nos e não nos sentimos, empurramo-nos e continuamos dormentes. É preciso chegar depressa, é preciso partir depressa. E nunca ficamos. Nunca temos tempo para reter o olhar nos pormenores, para descobrir os pequenos tesouros que desfilam todos os dias à nossa frente.
Há um dia que algo nos falha e somos obrigados a parar, andar mais lentamente que o habitual, fazer o percurso quotidiano a outro ritmo. E aí levamos um sôco no estômago. Vemos que, como nós, a vida passa e também não se retém nos pequenos nadas que nos falham. Passa-nos ao lado, como nós passamos ao lado de tanta gente dia após dia. E não nos pergunta quem somos, o que fazemos, o que buscamos. Passa. Só.
Nunca sabemos quem se realmente se esconde nos outros. O que está por trás da máscara que todos usamos, que nos prende as expressões do rosto, que aprisiona quem realmente somos quando ligamos o modo automático e vamos, em manada, a correr para os transportes, para o trabalho, para casa.
Um pouco mais de atenção. Um pouco mais de tempo. Um pouco mais de vontade. Seríamos todos seres-humanos muito mais sensatos.

19 julho, 2006

Sonhei contigo

Sonhei contigo. Estavas rodeado de gente, estavas com uma expressão leve, feliz, de quem está de bem com a vida e com a morte. Sereno. Encostaste a tua mão à minha cara, deste-me um beijo em cada lado do rosto e perguntaste se eu estava bem, como sempre fazias. Depois, disseste muito calmamente e a sorrir «Tu vois, je suis revenu».
Estremeci, acordei estremunhada. Olhei para o despertador. Eram 3.30 da manhã. O meu marido dormia, o meu filho também.
«Tu vois, je suis revenu» martela-me no pensamento desde essa hora. Voltaste, como se apenas partiste em Março? Já voltaste? Porquê em francês, seria um recado?
A pele do teu rosto estava mais brilhante, estavas mais bonito desde a última vez que te vi, inanimado, sem a expressão amena e familiar que era a tua. Foste uma das pessoas que mais me custou que soltasse amarras. Levaste um pouco da minha infância contigo. Tu, o tio Silvério, o primo Lourenço, a minha avó.
Há mais uma mão cheia de gente por quem nutro um carinho infantil. Ainda cá estão, mas sei que vão açambarcar o pouco que ainda resta da minha primeira infância quando partirem.
Que estejas bem, é o que te desejo. Não te temo nem te anseio, se quiseres continuar a visitar-me em sonhos sê benvindo, a porta está aberta para entrares. Amar, amar. Há ir e voltar...

As violetas





«As violetas não só enfeitaram a janela do meu quarto, mas também a do meu mundo novo que defrontava à minha frente. O amor permanecia além do tempo e do espaço». ("Violetas na Janela").
Obrigada por partilhares, por também tu enfeitares, como as violetas, o meu mundo. Esse teu gesto é tão grandioso que todas as palavras não chegam.
Obrigada.

18 julho, 2006

Gostava de saber

Gostava de saber pintar. É um dos sonhos que guardo no baú das coisas inconcretizáveis, mais uma coisa a resolver na próxima encarnação.
Admiro muito quem consegue passar sentimentos, emoções, medos para uma tela vazia. Para mim é um processo cheio de magia, cheio de encantamento, cheio de pózinhos de perlim-pim-pim, que me transcende, que me emociona.
Lentamente as cores vão tomando os seus lugares, os pincéis agitam-se no ar como que em duelo, as ideias vão perfilando umas atrás das outras. E a obra nasce, grandiosa, qual quimera saída das mãos de um alquimista.
A minha mãe e a minha irmã têm este dom. A mim restam-me as palavras e os trabalhos de agulha de que tanto gosto. Trabalhos de velhinha, como gosto de dizer. Que dão cabo da vista, mas um gozo tremendo e um aconchego grande à alma. Até nisto saio a ti, avó!
É com comoção que abro os braços e o coração para receber um quadro de alguém muito especial. Alguém que tem medo de não saber pintar para mim, medo de defraudar as possíveis expectativas que possa criar em relação à sua obra. A essa pessoa digo, com a maior sinceridade possível e SEM GUARDAS, como ela, um dia, me disse a mim:
Pinta sem medo, aquilo que sentires. Não te preocupes com o objectivo, frui a pintura como um processo em crescendo, não castres a imaginação ao pensares para que se destina. Mais uma vez, o importante não é o caminho, o importante é caminhar. Podes andar de encontro ao objectivo em linha recta, sem nunca perder o objectivo de vista. Mas o melhor, o melhor mesmo e o mais saboroso, é caminhar e parar um pouco para apreciar a paisagem. Aprecia a paisagem, amiga, que eu cá estarei para apreciar o quadro dessa viagem.
Se te ajuda deixo-te algumas dicas: se fosse um animal seria um gato, pela elegância, mistério e independência. Se fosse um número seria o 7 pela superstição que me transmite, ou o 3, número da criação. Se fosse uma cor seria vermelho ou laranja, pelo calor que me trazem. Se fosse um elemento seria água, pela imensidão que trasmite. Se fosse um meio de transporte seria um barco, para velejar sem fronteiras. Se fosse um livro seria o "Sidharta Gautama". Se fosse uma música seria o "Love's Divine" , do Seal ou o "Luka", da Suzanne Vega. Se fosse uma voz, certamente seria a voz mais doce que conheço, a da Suzanne Vega! Se fosse um poeta seria o Fernando Pessoa pela inteligência, mais a virar para o Alberto Caeiro pela simplicidade de ver a vida. Se fosse um escritor seria o Eça de Queiroz ela genialidade. Se fosse uma paisagem, seria uma seara a ondular ao vento num fim de tarde de Verão. Se fosse um cheiro seria o cheiro da terra molhada ou da relva acabada de cortar. Se fosse, se fosse, se fosse... Se fosse a ti pintava sem te preocupares comigo, que eu escrevo a pensar em ti mas também não escrevo a pensar apenas nas coisas que vais gostar de ler.
Mãos à obra, minha querida!

14 julho, 2006

Nunca

Nunca fui ao cemitério à tua procura. Não fui ao teu funeral, os meus pais acharam que era muito pesado para das crianças como nós. Nunca questionei essa decisão. Fizeram o que acharam melhor, mas custou-me mais a mentalizar-me que já cá não estavas, que fisicamente já não ocupavas o teu espaço neste mundo para além da campa onde te enterraram.
Nunca te levei flores. Perdoas-me? Puz-te flores todos os dias, em pensamento, no coração, mas nunca fui ter contigo ao cemitério. Algum tempo depois entendi que já lá não estavas, que estavas em todo o lado, nas grandes coisas e, sobretudo, nas pequenas. No vento que sibila pelos campos, nos pássaros que cantam todas as manhãs, nas flores selvagens que nascem nos lugares mais inóspitos.
Com a consciência que hoje tenho, acredito que ter-me-ia feito bem ter-te visitado. Tocar a terra que tocaste pela última vez, levar-te um raminho de malmequeres, ler para ti um dos salmos de que tanto gostavas. Hoje não tenho onde me dirigir. Não tenho espaço físico para plantar todas as flores que tenho para te oferecer, não tenho campa raza sobre a qual rezar. Tenho apenas o espaço da minha alma para te albergar e o meu coração para te dedicar.
Cantaram muito no teu funeral, avó, ouviste? Como eu gostava de ter ouvido. Como eu gostava de ter cantado. Deves ter ficado feliz. Vestiram-te a tua blusa amarela preferida, deram-te banho com um amor tão grande como só uma amiga e uma filha poderiam ter feito. Morreste na casa onde passaste quase toda a tua vida.
Tinhas sonhado nas noites anteriores que chegavas a uma casa branca, cheia de luz, onde as pessoas se vestiam todas de cores claras e sorriam muito para ti. Estavas preparada para partir, foste em paz.
Nunca fui ao cemitério procurar ninguém. Dou por mim a querer levar flores a tu sabes quem. Dou por mim a chorar e a sofrer quase como por ti. Dou por ela a chamar-me ao seu encontro. Tenho de lá ir deixar-lhe flores, acender uma vela, cantar um pouco. Contudo, não quero ser uma intrusa.

Não pretendo

Não pretendo escrever só coisas tristes, mas que culpa tenho eu que as coisas tristes sejam, muitas vezes, as mais belas? Porque a beleza das coisas está-lhes debaixo da pele e não à superfície, como se pensa. Não pretendo que este seja um blog negro, ainda que muitas vezes fale de angústia, de morte, dos medos que acumulo em mim e dos quais tenho, confesso, alguma vergonha.
Não pretendo moralizar, não pretendo ensinar, não pretendo criticar ninguém. Tão só e apenas partilhar-me com quem esteja disposto a conhecer-me, tão só dizer «estou aqui» para quem precise de o ouvir.
Tão só e apenas dizer o que penso, o que sinto, o que me move, o que me escapa, o que me falha. Tão só e apenas dizer «sou humana, como vocês». Tão só e apenas dar voz ao que a vida quotidiana tantas vezes me cala.
Quem vier que venha por bem, quem ficar que fique melhor, quem partir que tenha uma boa caminhada.

Pirilampo

Pirilampo
que iluminas a noite
ilumina a minha alma
tão sombria.
Vem trazer-me
a esperança
que me falta,
faz nascer
dentro de mim
um novo dia.
Pirilampo
que te escondes
pelos campos
vem à noite
visitar-me à janela.
Traz saudades,
traz-me risos,
traz-me prantos,
traz-me o brilho
imenso
dos olhos DELA.
Catarina Silva

13 julho, 2006

Escrever, para quê?

Escrever, para quê?
Neste tempo que estive despovoada de letras, em que as minhas mãos ao invés de comandarem lápis e canetas se entretiveram com fraldas e biberões, muitas vezes pensei que a escrita me tinha abandonado, que me tinha virado as costas, que se tinha esquecido de mim. Não consegui ligar esse facto ao ter sido mãe. Afinal, o que há de mais bonito, de superior ao ser mãe? À excepção de conseguirmos amar os filhos dos outros como se fossem nossos, não há nada mais grandioso do que ser mãe de alguém. Diante toda esta beleza, diante de todo este deslumbramento fiquei muda. As palavras existiam, habitavam em mim ainda que dormentes, mas teimavam em não sair. Tentei escrever noutro registo, tentei manter um babyblog, mas aquela não era eu e, sinceramente, acho que o meu filho vai gostar mais de conhecer a pessoa que a mãe realmente foi do que a data em que nasceu o primeiro dente. Mas sei as datas todas, just in case.
Andei muda, mas não cega. Continuei a ler os meus blogues de eleição, a maior parte dos quais babyblogs (adoro lê-los, mas não consigo ser eu a fazê-lo, soa-me a falso), a maior parte deles com o registo dos grandes progressos dos bebés que eu "lia" ainda estavam na barriga da mãe. Mas foi um, especialmente um, que me fez acordar desta dormência. Foi o sofrimento de uma família que me "desengasgou" as palavras, que fez com que as cuspisse cá para fora, que fez com que achasse importante (sobretudo para mim) escrever o que me vai na alma sem querer saber o que é que X ou Y pensam disso. Foi a dor daquela mãe e os olhos daquela filha que me bateram como se me tivessem dado uma tareia, que me desinquietaram, que me fizeram acreditar que a vida é tão breve que deve ser levada da melhor maneira possível. E o melhor, para mim, não é fugir dos medos. É enfrentá-los de peito erguido, para o que der e vier. Ainda que o medo me roa por dentro, há que avançar, sempre.
Retomei o meu caminho, reencontrei a minha verdade. Esta sou eu, toda letras, toda sentimentos, sentidos, intuições. Reencontrei-me e tenho uma dádiva para com essas duas mulheres. Uma grande mulher e outra uma menina, um anjo cheio de luz, uma alma tão grande que não cabia neste mundo. Perante a vossa dor as palavras foram-se soltando, desprendendo de mim, ocupando os antigos espaços. É o meu submundo a vir ao de cima, mais uma vez. E dou por mim a amar o próximo, como tu dizias, avó. Agora sei o que é. Estendo a minha mão na esperança de que um dia possa servir de algum apoio.
Queria, de alguma forma, agradecer. Queria, de alguma maneira, retribuir. E penso «escrever para quê?». Para te fazer uma vénia, curvada sobre a minha pequenez, perante a grandeza da tua alma.

12 julho, 2006

Tu dizias

Tu dizias, muito sabiamente, que havia que fazer bem sem olhar a quem. Quando era pequena nunca me apercebi da dimensão dessa frase, mas à medida que fui crescendo foi tomando forma em mim um desejo de deixar a minha marca no mundo, de ajudar quem precisava, de fazer, de alguma forma, com que o mundo de alguém se tornasse melhor por minha causa. Tantos planos, avó, que tracei no ímpeto da adolescência, quando a vida ainda está em projecto, prestes a ser concretizada, passo a passo, tijolo a tijolo. Tantos planos deitados ao vento, por força da vida, que nos ilude, desilude, que nos dá e volta a tirar, que nos faz andar às curvas em vez de andarmos a direito. Afastei-me tanto deles, transformei-me numa pessoa em quase tudo diferente do que tinha imaginado para mim. Nem melhor nem pior, diferente.
O sonho da minha vida era viver da escrita, escrever "à séria", não esta escrita de consumo rápido que se faz por aí. Mas cedo percebi que sonhar muito alto nos faz queimar as asas e que os chamados artistas não vingam no nosso país. Então, apesar de alguns prémios e publicações de poemas e textos nos jornais, tirei um curso, arregacei as mangas e fui trabalhar. Tirei um curso para ser professora. Sou secretária, avó. Vês a disparidade da coisa?
Sempre me imaginei como professora, daquelas que vão para o estrangeiro, ajudar a alfabetizar crianças necessitadas, tomar contacto com culturas diferentes da nossa, sentir a miséria, a fome, a morte de perto. Porque achava que faria a diferença para alguém, porque achava que a minha vida teria mais sentido, porque achava que a maneira de ver a vida se alteraria por completo. A vida não é só este rame-rame de todos os dias, isso eu sei, avó. Mas gostava de saber mais e de poder fazer muito mais. Sempre me imaginei solteira, sem filhos, com um espírito de missão aguçado e sempre de mochila às costas pronta a partir. Gostava de ser assim, mas não sou. Fui-me prendendo por cá, namorado, trabalho, casa, carro, filho. E dou por mim com os braços amarrados e o meu espírito de missão latente. O Ter foi-me tolhendo os movimentos e venceu-me contra o Ser. O tal mundo e submundo de que já falei.
Gostava de adoptar uma criança, mesmo sabendo que, provavelmente, nunca o farei. Porque a pessoa que está ao meu lado não tem força suficiente para aceitar como igual um filho que não seja por nós gerado e eu só me meto nas coisas com bases sólidas e não gosto de brincar com vidas alheias, muito menos a de uma criança. Mas gostava, é um dos sonhos da minha vida. Fica para a próxima encarnação.
Gostava de fazer voluntariado num hospital, mais especificamente, gostaria de dar apoio a crianças em estado terminal. É preciso muita força, eu sei. Mas eu acho que a tenho e creio que me ajudaria a encarar a morte de outra maneira. Por enquanto não tenho tempo e tenho uma criança pequena em casa, o que não me permite frequentar ambientes hospitalares por dá cá aquela palha, mas este sonho vai cumprir-se, tenho a certeza disso. Tanta certeza como estar aqui, agora, a escrever este texto. A morte não tem sentido, como já tantas pessoas me disseram, mas acho que esta experiência me dará outro sentido à vida.
Quero testar a força do espírito sobre a matéria, quero pôr à prova o quanto me posso dar aos outros desinteressadamente. Porque a vida não é só isto, não pode ser.
Acredito que vimos ao mundo com a missão de superarmos as coisas que não conseguimos vencer na encarnação anterior. Limarmos as arestas, as imperfeições. Até ao dia em que não voltamos mais. Sei que uma coisa a vencer é esta fobia da morte dos outros que me consome. Este pavor que tenho só de pensar, este frio no estômago que me imobiliza. Sei que esta é uma das "falhas" que quero corrigir antes de passar ao próximo nível. Como é que sei? É o espírito que me impele. Ainda que o meu deus não tenha nome nem rosto, acredito que existe uma entidade lá em cima. Pode não ser omnipresente, pode falhar como nós falhamos cá em baixo, mas acredito que ainda estamos na base daquilo que nos espera.
Quero um dia, como tu tão bem dizias, conseguir fazer o bem sem olhar a quem.

07 julho, 2006

Tenho em mim

Tenho em mim dois mundos que se tocam. Mundo e submundo. Vida e subvida. Pele e entranhas. Creio que ninguém verdadeiramente me conhece.
Acho que as pessoas têm de se descobrir aos poucos, não têm de se dar a conhecer assim, num esgar, num abrir e fechar de olhos. Dar-se a descobrir, sim. Mas o outro tambem tem de querer descobrir, saber mais, empenhar-se na conquista. Hoje em dia é tudo pelo imediatismo, pelo fácil, pelo «já está», pelo «queres ou não queres». Não há tempo a perder. Eu nunca fui assim e duvido que alguma vez o serei. Cada vez mais.
Lembro-me do tempo em que era importante escutar em vez de ouvir e ver em vez de olhar. Quebrar a superfície para se chegar ao que está por dentro, tocar a pele para chegar à alma das coisas. Serei só eu a querer perder tempo com isto?
Entristece-me perceber que ninguém me conhece "do avesso". Saber quem realmente sou, quais os meus sonhos mais insondáveis, o que é que me toca, o que me faz rir, o que me faz chorar? Sei que não sou uma pessoa linear, sei que para chegar a mim só há dois caminhos: pelo meu mundo ou pelo meu submundo. Os que chegam pelo segundo raramente se vão embora, não os deixo partir, como a ti, avó. Guardo-os em mim para sempre, nem que não os veja nunca mais. Tenho um amigo com quem falo de longe a longe. Contudo, continuo a considerá-lo o meu melhor amigo. E para mim continuam a ser essas pessoas que valem a pena. Chateia-me é o facto de o mundo estar cheio das outras.
Os que olham para mim nem imaginam o que me vai por dentro, o que me passa pela cabeça, o que me enche ou pesa no peito todos os dias. Há em mim muito de intuição, muito de fé, pouco de religiosidade. Porque para acreditar não preciso de ter quem me diga como nem porque parâmetros me devo reger. Porque não preciso ter um deus para ter fé, não preciso de uma igreja para rezar. E rezo, todos os dias, por palavras que eu própria encadeio, por frases que saem de mim e não de um livro qualquer, com uma crença que é minha e não dos outros. Não me lembro há quantos anos isto me acontece, creio que foi depois da tua partida. Surgiu em mim a necessidade de falar comigo própria, de olhar para dentro, de fechar os olhos e sentir. Desde aí que me sinto como se tivesse duas vidas. E cada vez que a vida me corre menos bem, paro, concentro-me, preparo-e para fechar os olhos e sentir. E então, por entre estilhaços, por entre lágrimas e gritos, sinto-me liberta, sinto-me nova, de alma lavada. E as coisas relativizam-se e tomam a dimensão que lhes dou.
Melhor do que eu disse, um dia Ricardo Reis:

«Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.»

Quero ser grande, quero ser inteira, ainda que para a maior parte das pessoas isso não tenha a mínima importância.

06 julho, 2006

A vida empurra-nos para a frente

A vida empurra-nos para a frente. Impiedosa, sem contemplações.
Porque nós nos esquecemos que somos seres imperfeitos, de carne e osso e sangue e veias, perecíveis e vulneráveis, frágeis. E quem pensar o contrário por certo anda enganado. (Não andamos todos?).
A vida empurra-nos para a frente, para trás, para os lados, em círculos, a direito, aos zigue-zagues. E nós vamos andando, arrastados, empurrados, puxados por uma força que nos contraria a vontade e que nos domina e que não nos deixa parar. Assim é. Ainda bem que assim é.
Obrigada, amiga, por nos dares exemplos de grande nobreza de alma todos os dias. Por partilhares connosco os teus pequenos passos, as tuas pequenas conquistas. A dor vai passar, as saudades permanecerão sempre, cada vez mais, mas a vida empurra-te para a frente. ANDA, como diz o teu filho, não desistas e tem sempre a certeza, sempre, que ELA anda contigo.