Projecto âncora
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Cartas à minha avó: outubro 2007

15 outubro, 2007

Reconheci o teu rosto

Reconheci o teu rosto naquela expressão de dignidade apesar de já se saber que os passos a levavam para o abismo. Reconheci o teu rosto naqueles olhos expressivos e naquela boca sumida que pedia com todas as letras "Deixem-me partir". Nos traços despojados de volume, nos pulsos finos, no pescoço anguloso de quem, inacreditavelmente, já teve outra expressão. Nas mãos, magras, finas, transparentes, adornadas de veias salientes e sinuosas. Reconheci o teu rosto. Estavas por todo o lado, estavas ali, no ecrã, e senti-te tão perto que o meu peito disparou e os meus olhos não contiveram a emoção ali mesmo, à frente de outras pessoas. Reconheci-te naquela expressão de morte lenta que não consigo apagar de mim por mil anos que viva, naquele compasso em que se está apenas à espera que o tempo passe, tic-tac, tic-tac, tic-tac... E o silêncio invade os espaços, transborda, envolve tudo à nossa volta. Dilacera.


Reconheci o teu rosto no rosto da Rita Ressano Garcia, que faleceu há três meses mas que colaborou num documentário da Alexandra Borges, (espero não me ter enganado), em que dizia que já sabia que ia morrer e apenas pedia cuidados paliativos. Que havia dias que acordava a ganir, que não se sentia humana, que, a partir, que partisse bem, com o mínimo sofrimento possível. Que lhe fazia falta aquele abraço e não mais sessões de quimioterapia que já sabia não lhe prometerem a cura, apenas mais desgaste físico, apenas mais desgaste psicológico, apenas mais sofrimento. Não consegui ver mais, as lágrimas toldaram-me os olhos e os movimentos bruscos da minha cara começaram a fazer-me doer os lábios e os maxilares. De repente veio-me tudo à memória, a tua recaída no dia da mãe, a tua resignação, o facto de te terem um dia lido a sina e te terem dito que morrerias aos 62 anos. Não sabia disso. Quando soube percebi o facto de não estares revoltada. Criança de 12 anos que era não tive acesso a todos os pormenores. Sei que a doença na altura era tabu, que havia pessoas que achavam que era contagiosa, que sofreste algum tipo de discriminação mesmo dentro da família. E pergunto-me incessantemente o quanto sofreste, o quanto, quiçá, ganiste e o pouco humana que te fizeram sentir nas quatro paredes de um qualquer quarto de hospital. Mandaram-te para casa para morreres junto dos que mais amavas. Assim foi. Pelo menos no último momento tiveste a dignidade que mereceste. E a paz.
Hoje, com quase 30 anos, apercebo-me e questiono coisas que, na altura, não me passavam pela cabeça. E fica uma promessa para cumprir quando tiver mais disponibilidade de tempo. Se a vida assim me permitir. A promessa do voluntariado. Ajudar quem precisa. Quando tiver tempo, quando tiver estofo. Quando tiver forças.

02 outubro, 2007

Não sou fã de rugby

Não sou fã de rugby. Na realidade não percebo patavina deste desporto de contacto. Sei que é para gente destemida, que transpõe obstáculos, que não se amedronta com o adversário.
Não sou fã. Mas fez-me vibrar mais a interpretação d'A Portuguesa que os LOBOS fizeram do que qualquer outra coisa nos últimos tempos. Assim, cantar por um país que não lhe paga para o representar (no qual a licença sem vencimento e o auto-patrocíno se tornam as opções viáveis). Cantar por um país nada promissor, nada risonho, nada feliz. Assim, cantar com a alma toda por um país que não nos augura nada de bom e que tem sido ultimamente um paraíso cinzento e triste. E ponho-me a pensar se não é isto que faz falta. Não é o país. São as pessoas, as convicções, os sonhos, a capacidade de acreditar e ir à luta.
Faço uma vénia, rendida de comoção e de orgulho: obrigado pelo exemplo, obrigado pelo alento, obrigado pelo sonho. E anseio que esta se torne uma pátria cada vez mais de lobos e menos de raposas...