Projecto âncora
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Cartas à minha avó: Tenho em mim

07 julho, 2006

Tenho em mim

Tenho em mim dois mundos que se tocam. Mundo e submundo. Vida e subvida. Pele e entranhas. Creio que ninguém verdadeiramente me conhece.
Acho que as pessoas têm de se descobrir aos poucos, não têm de se dar a conhecer assim, num esgar, num abrir e fechar de olhos. Dar-se a descobrir, sim. Mas o outro tambem tem de querer descobrir, saber mais, empenhar-se na conquista. Hoje em dia é tudo pelo imediatismo, pelo fácil, pelo «já está», pelo «queres ou não queres». Não há tempo a perder. Eu nunca fui assim e duvido que alguma vez o serei. Cada vez mais.
Lembro-me do tempo em que era importante escutar em vez de ouvir e ver em vez de olhar. Quebrar a superfície para se chegar ao que está por dentro, tocar a pele para chegar à alma das coisas. Serei só eu a querer perder tempo com isto?
Entristece-me perceber que ninguém me conhece "do avesso". Saber quem realmente sou, quais os meus sonhos mais insondáveis, o que é que me toca, o que me faz rir, o que me faz chorar? Sei que não sou uma pessoa linear, sei que para chegar a mim só há dois caminhos: pelo meu mundo ou pelo meu submundo. Os que chegam pelo segundo raramente se vão embora, não os deixo partir, como a ti, avó. Guardo-os em mim para sempre, nem que não os veja nunca mais. Tenho um amigo com quem falo de longe a longe. Contudo, continuo a considerá-lo o meu melhor amigo. E para mim continuam a ser essas pessoas que valem a pena. Chateia-me é o facto de o mundo estar cheio das outras.
Os que olham para mim nem imaginam o que me vai por dentro, o que me passa pela cabeça, o que me enche ou pesa no peito todos os dias. Há em mim muito de intuição, muito de fé, pouco de religiosidade. Porque para acreditar não preciso de ter quem me diga como nem porque parâmetros me devo reger. Porque não preciso ter um deus para ter fé, não preciso de uma igreja para rezar. E rezo, todos os dias, por palavras que eu própria encadeio, por frases que saem de mim e não de um livro qualquer, com uma crença que é minha e não dos outros. Não me lembro há quantos anos isto me acontece, creio que foi depois da tua partida. Surgiu em mim a necessidade de falar comigo própria, de olhar para dentro, de fechar os olhos e sentir. Desde aí que me sinto como se tivesse duas vidas. E cada vez que a vida me corre menos bem, paro, concentro-me, preparo-e para fechar os olhos e sentir. E então, por entre estilhaços, por entre lágrimas e gritos, sinto-me liberta, sinto-me nova, de alma lavada. E as coisas relativizam-se e tomam a dimensão que lhes dou.
Melhor do que eu disse, um dia Ricardo Reis:

«Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.»

Quero ser grande, quero ser inteira, ainda que para a maior parte das pessoas isso não tenha a mínima importância.