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Cartas à minha avó: Tu dizias

12 julho, 2006

Tu dizias

Tu dizias, muito sabiamente, que havia que fazer bem sem olhar a quem. Quando era pequena nunca me apercebi da dimensão dessa frase, mas à medida que fui crescendo foi tomando forma em mim um desejo de deixar a minha marca no mundo, de ajudar quem precisava, de fazer, de alguma forma, com que o mundo de alguém se tornasse melhor por minha causa. Tantos planos, avó, que tracei no ímpeto da adolescência, quando a vida ainda está em projecto, prestes a ser concretizada, passo a passo, tijolo a tijolo. Tantos planos deitados ao vento, por força da vida, que nos ilude, desilude, que nos dá e volta a tirar, que nos faz andar às curvas em vez de andarmos a direito. Afastei-me tanto deles, transformei-me numa pessoa em quase tudo diferente do que tinha imaginado para mim. Nem melhor nem pior, diferente.
O sonho da minha vida era viver da escrita, escrever "à séria", não esta escrita de consumo rápido que se faz por aí. Mas cedo percebi que sonhar muito alto nos faz queimar as asas e que os chamados artistas não vingam no nosso país. Então, apesar de alguns prémios e publicações de poemas e textos nos jornais, tirei um curso, arregacei as mangas e fui trabalhar. Tirei um curso para ser professora. Sou secretária, avó. Vês a disparidade da coisa?
Sempre me imaginei como professora, daquelas que vão para o estrangeiro, ajudar a alfabetizar crianças necessitadas, tomar contacto com culturas diferentes da nossa, sentir a miséria, a fome, a morte de perto. Porque achava que faria a diferença para alguém, porque achava que a minha vida teria mais sentido, porque achava que a maneira de ver a vida se alteraria por completo. A vida não é só este rame-rame de todos os dias, isso eu sei, avó. Mas gostava de saber mais e de poder fazer muito mais. Sempre me imaginei solteira, sem filhos, com um espírito de missão aguçado e sempre de mochila às costas pronta a partir. Gostava de ser assim, mas não sou. Fui-me prendendo por cá, namorado, trabalho, casa, carro, filho. E dou por mim com os braços amarrados e o meu espírito de missão latente. O Ter foi-me tolhendo os movimentos e venceu-me contra o Ser. O tal mundo e submundo de que já falei.
Gostava de adoptar uma criança, mesmo sabendo que, provavelmente, nunca o farei. Porque a pessoa que está ao meu lado não tem força suficiente para aceitar como igual um filho que não seja por nós gerado e eu só me meto nas coisas com bases sólidas e não gosto de brincar com vidas alheias, muito menos a de uma criança. Mas gostava, é um dos sonhos da minha vida. Fica para a próxima encarnação.
Gostava de fazer voluntariado num hospital, mais especificamente, gostaria de dar apoio a crianças em estado terminal. É preciso muita força, eu sei. Mas eu acho que a tenho e creio que me ajudaria a encarar a morte de outra maneira. Por enquanto não tenho tempo e tenho uma criança pequena em casa, o que não me permite frequentar ambientes hospitalares por dá cá aquela palha, mas este sonho vai cumprir-se, tenho a certeza disso. Tanta certeza como estar aqui, agora, a escrever este texto. A morte não tem sentido, como já tantas pessoas me disseram, mas acho que esta experiência me dará outro sentido à vida.
Quero testar a força do espírito sobre a matéria, quero pôr à prova o quanto me posso dar aos outros desinteressadamente. Porque a vida não é só isto, não pode ser.
Acredito que vimos ao mundo com a missão de superarmos as coisas que não conseguimos vencer na encarnação anterior. Limarmos as arestas, as imperfeições. Até ao dia em que não voltamos mais. Sei que uma coisa a vencer é esta fobia da morte dos outros que me consome. Este pavor que tenho só de pensar, este frio no estômago que me imobiliza. Sei que esta é uma das "falhas" que quero corrigir antes de passar ao próximo nível. Como é que sei? É o espírito que me impele. Ainda que o meu deus não tenha nome nem rosto, acredito que existe uma entidade lá em cima. Pode não ser omnipresente, pode falhar como nós falhamos cá em baixo, mas acredito que ainda estamos na base daquilo que nos espera.
Quero um dia, como tu tão bem dizias, conseguir fazer o bem sem olhar a quem.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ceús!!! Revi-me em tanto do que escreveste. Um dia, quem sabe, haverá a tal união ou aproximação do Ser e do Ter...e sim, a tua escrita é bela, como tu és. Não abandones os sonhos, podem estar mais perto do que imaginas....
Fátima (Mamãããã!!!)

4:24 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bem, já há a opção outro aqui!
Catarina, leio-te desde o 1º dia, mas nao conseguia comentar.Acho lindo o que escreves. A tua avó, deve adorar ler as cartas que lhe escreves.Por hoje fica um beijinho para ti, revejo-me em muito do que disseste, principalmente da parte do voluntariado e de nao ter tempo para nada por se ter uma criança pequena. Nao me estou a lamentar, estou a constatar que há mais como eu!
Beijinhos e vou aparecendo, ou melhor comentando, por venho aqui quase todos os dias. Sonia
Sonia

5:11 da tarde  

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