Projecto âncora
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Cartas à minha avó: março 2007

22 março, 2007

Começou a Primavera

Começou a Primavera. Dentro de mim instalou-se um frio cortante que me gela os ossos. Tenho quase trinta anos (trinta?) e pela primeira vez tenho plena consciência de mim mesma. Que existo, que sou, que quero, que mereço. A partir daqui apenas caminhará comigo quem souber acompanhar-me, quem souber manter o ritmo, quem estiver em sintonia com a minha passada.
Começou a Primavera. A peregrinação cá dentro continua, comovo-me com o que encontro, emociono-me com esta maneira de ser a ferro e fogo, com esta maneira de sentir as coisas na pele, com esta maneira de tornar talvez mais complicadas e mais pesadas coisas que, para os outros, seriam mais simples. Só sei viver a fundo. Mas tenho vivido à superfície.
Começou a Primavera. E dentro de mim floresço. E dentro de mim me encontro. E dentro de mim sofro e cresço.

21 março, 2007

Não gosto

Não gosto de fazer anos. Não é o tempo que me pesa nos ombros qual armadura de metal enferrujado. Não são os anos que me entristecem e me angustiam, que me enraivecem e me trazem as lágrimas aos olhos. Sou eu. Pura e simplesmente eu. Quando me sinto sozinha no meio da multidão, quando entendo que os outros não chegam a mim talvez por este meu orgulho não declarado de me mostrar forte, autosuficiente, autónoma, auto-tudo e mais alguma coisa. Mas não sou, é só a minha capa, a minha casca, a máscara que ponho todos os dias antes de sair.
Não gosto de fazer anos. Acho que nunca gostei realmente. Nesta data sinto sempre que não mereço, tenho sempre pudor em receber prendas, incomoda-me um pouco estar no centro das atenções.
Este ano, com 29 anos, acho que aprendi a gostar desta data. Porque este ano houve três coisas que me marcaram neste dia e que nunca vou esquecer. Três mulheres que, por diferentes motivos, tornaram o meu dia memorável com um gesto, uma prenda e uma companhia. Um gesto que eu não esperava, a prenda que eu realmente queria (e que me ofereceram sem o saber) e a companhia que anseava há já algum tempo. Este ano, com 29 anos, há uma coisa que se mantém: as melhores prendas não são aquelas que custam mais dinheiro, são as mais simples e as que são dadas de coração.

Obrigada à minha mana Marta, à minha colega Sónia e à minha amiga Fátima, por terem tornado este dia num dia memorável. E obrigado à minha mãe e ao meu pai por se terem lembrado de me conceber!

05 março, 2007

Um dia, quando fores grande

Um dia, quando fores grande, entenderás que por cima de estilhaços também se podem erguer castelos. Um dia, mais para a frente, entenderás que quem já sofreu demais e quem já perdeu quase tudo sabe dar mais valor à vida, às pequenas vitórias que se ganham, aos sorrisos e às lágrimas. Um dia, Juliana, saberás que encheste os braços vazios dos teus pais e lhes deste a oportunidade de sorrir de novo.
Sê bem-vinda!

Aos vinte anos

Aos vinte anos escrevia assim:
"O maior defeito da vida humana é a aprendizagem do amor. Tanta coisa que nos ensinam, mas a aprendizagem do amor permanece vedada a intrusões fortuitas. Persevera e continua alheia aos que buscam a facilidade, a alegria, a falta de preocupação constante. Nascemos do amor e o amor buscamos durante toda a nossa existência. Engrandece-nos, mas a ele nos baixamos quando nos surge no caminho. Não há maior fonte de contradições do que esse estado maravilhoso que nos poda e nos verga de cada vez que nos toca.
Nunca dei pela escrita à minha volta. Ela esteve sempre dentro de mim como um fogo adormecido que vai reacendendo com o tempo, um sinal abstracto com que me marcaram à nascença, uma doença que me faz mexer os dedos, inchar os olhos, queimar as pestanas pela noite dentro em espasmos e convulsões.
Escrever é para mim quase tão absoluto quanto estar aqui a pensar na vida que vivi, na que me resta ainda, na pessoa que fui até esta parte e em todas as pessoas que passaram por mim sem dar por isso. Escrever é a carne que sou e da qual me alimento, é a migalha na boca e o coração aos saltos, o que sai de mim e a mim retorna, o esforço e a recompensa de uma só vez.
Nunca me atrevi dizer-me escritora. Sem saber como, sinto que sujo a boca e a palavra me transcende. O facto é que ontem dei por mim de caneta em riste a tecer longas e detalhadas notas sobre o amor nas costas de um bilhete de autocarro. Não reparei em nada até que chegou o revisor e me lançou um olhar de desagrado por cima do bigode, ao qual prontamente virei o bilhete em sinal de respeito, para ele mo picar com um instrumento metálico e enferrujado e seguir por fim, virando-me as costas, pelo corredor sujo e estreito da viatura. Virei novamente o bilhete e reparei, com algum gozo, que o furo tinha acertado em cheio no ó de amor.
Há qualquer coisa nos comuns mortais que os impede de se aperceberem dos pequenos prazeres da vida, como escrever nas costas de um bilhete ou analisar discretamente uma pessoa da cabeça aos pés, sair na paragem seguinte e, num banco de jardim ou numa pedra do passeio, passar para o papel a sua figura em palavras. Há qualquer coia que lhes estanca a imaginação, que lhes prende o cérebro à cabeça e os olhos às lentes dos óculos. Há qualquer coisa misteriosa que lhes restringe os limites daquilo que poderiam ser, com um misto de esforço e atenção ao mundo que nos rodeia."
Aos vinte anos escrevia assim. Quase uma década depois constato que, realmente, não escrevia nada mal para uma rapariga tão jovem. Mas o que noto mais é que, quase uma década depois, pareço ter aberto a mão em que guardava os meus sonhos e hoje tudo é diferente. O que aconteceu comigo? Passei a viver para fora e esqueci-me de regar o meu jardim, como dizia Voltaire. 2007 é o ano da mudança, tenho essa certeza em mim. E das minhas mãos vão germinar novamente muitos sonhos.