Aos vinte anos escrevia assim:
"O maior defeito da vida humana é a aprendizagem do amor. Tanta coisa que nos ensinam, mas a aprendizagem do amor permanece vedada a intrusões fortuitas. Persevera e continua alheia aos que buscam a facilidade, a alegria, a falta de preocupação constante. Nascemos do amor e o amor buscamos durante toda a nossa existência. Engrandece-nos, mas a ele nos baixamos quando nos surge no caminho. Não há maior fonte de contradições do que esse estado maravilhoso que nos poda e nos verga de cada vez que nos toca.
Nunca dei pela escrita à minha volta. Ela esteve sempre dentro de mim como um fogo adormecido que vai reacendendo com o tempo, um sinal abstracto com que me marcaram à nascença, uma doença que me faz mexer os dedos, inchar os olhos, queimar as pestanas pela noite dentro em espasmos e convulsões.
Escrever é para mim quase tão absoluto quanto estar aqui a pensar na vida que vivi, na que me resta ainda, na pessoa que fui até esta parte e em todas as pessoas que passaram por mim sem dar por isso. Escrever é a carne que sou e da qual me alimento, é a migalha na boca e o coração aos saltos, o que sai de mim e a mim retorna, o esforço e a recompensa de uma só vez.
Nunca me atrevi dizer-me escritora. Sem saber como, sinto que sujo a boca e a palavra me transcende. O facto é que ontem dei por mim de caneta em riste a tecer longas e detalhadas notas sobre o amor nas costas de um bilhete de autocarro. Não reparei em nada até que chegou o revisor e me lançou um olhar de desagrado por cima do bigode, ao qual prontamente virei o bilhete em sinal de respeito, para ele mo picar com um instrumento metálico e enferrujado e seguir por fim, virando-me as costas, pelo corredor sujo e estreito da viatura. Virei novamente o bilhete e reparei, com algum gozo, que o furo tinha acertado em cheio no ó de amor.
Há qualquer coisa nos comuns mortais que os impede de se aperceberem dos pequenos prazeres da vida, como escrever nas costas de um bilhete ou analisar discretamente uma pessoa da cabeça aos pés, sair na paragem seguinte e, num banco de jardim ou numa pedra do passeio, passar para o papel a sua figura em palavras. Há qualquer coia que lhes estanca a imaginação, que lhes prende o cérebro à cabeça e os olhos às lentes dos óculos. Há qualquer coisa misteriosa que lhes restringe os limites daquilo que poderiam ser, com um misto de esforço e atenção ao mundo que nos rodeia."
Aos vinte anos escrevia assim. Quase uma década depois constato que, realmente, não escrevia nada mal para uma rapariga tão jovem. Mas o que noto mais é que, quase uma década depois, pareço ter aberto a mão em que guardava os meus sonhos e hoje tudo é diferente. O que aconteceu comigo? Passei a viver para fora e esqueci-me de regar o meu jardim, como dizia Voltaire. 2007 é o ano da mudança, tenho essa certeza em mim. E das minhas mãos vão germinar novamente muitos sonhos.